A Gente e as Pessoas.

 

Há tempos, a conversar com uma amiga acerca do pobre mundo dos nossos filhos, saiu a um de nós o desabafo: “Cada vez há mais “gente” a criar menos pessoas.”
Hoje ocorre-me que se calhar a expressão “consciente colectivo”, está a ser levada demasiado a sério e a ser confundida com o “sentido de manada”, e que a geração de seres humanos cada vez mais estúpidos e limitados já deve ter características de fenómeno.
As pessoas (seres humanos individuais, pensantes pela sua cabeça), não são necessariamente melhores cidadãos do que a gente (seres humanos da manada, acarneirados), mas são mais interessantes nas suas classes, menos enfadonhos, menos incaracteristicos, menos repetitivos, e acima de tudo, mais exigentes.
O grupo da gente é maior, muito maior e mais estável, fruto da tal identidade coletiva inerte e viral, e da livre circulação da imbecilidade.
As pessoas por serem individuais, têm a força dispersada. A gente tem gostos, comportamentos e modos de agir e reagir uniformizados. São uma mole alegre, pitoresca, potencialmente esquizofrénica e vincadamente barroca. O grupo “gente” cresce resgatando lentamente para si as pessoas mais fracas.
Esta metamorfose agrada às corporações e dirigentes, que através dos yes man, os seus seres humanos amestrados professam a renúncia do “eu” como uma doutrina, de pais para filhos, entre vizinhos, em anúncios da televisão e discursos políticos e religiosos. Acreditam por fé no que dizem os “especialistas”, (cada vez há mais especialistas), na internet e nos media que lhes despejam entretenimento em forma de informação, noticiários com guião de telenovela e lhes dão novidades disfarçadas de notícias. A maior parte das pessoas gosta de pensar e de ser quem é e isso traz-lhes alguns dissabores e acanhamento. A gente vive bem sem porquês, que para mais não servem, do que envenenar a paz de espírito com a dúvida. Não se é, ou uma pessoa ou gente, por meio da educação, por consanguinidade ou pela carreira, embora o convívio prolongado e sem acompanhamento, possa levar as pessoas mais inseguras a sucumbirem e a tornarem-se gente numa vida plena de reflexos e ecos, sem o engodo do pensamento livre e independente. Do mesmo modo, há gente que se pode tornar pessoa e deixar de acreditar que todos somos um só.
Não acredito que haja de nascença ou por predisposição, mais honestidade, mais honra ou mais nobreza de caracter num grupo do que no outro. Ninguém é bom ou mau, por ser uma pessoa ou ser gente… mas o pensamento livre e a dúvida séria, não conspirativa apreciadas pelas pessoas, opõem-se à delegação das escolhas e ao complexo da perseguição adoptados pela gente.
Grande parte da gente não gosta de ser quem é, nem o que é e então despende um disparate de energias e imaginação em cosmética de aparência, tentando parecer o conjunto das melhores características dos heróis dos seus amigos, em vez de tentarem retocar-se para se aproximarem da pessoa que gostariam de ser. Desenvolvem avatares de si próprios, e depois ninguém os conhece inteiros, o que dão de si são adaptações momentâneas, num erro de casting persistente. Tentam gostar todos das mesmas coisas, os programas da manhã na rádio e os da noite na televisão, os mesmos cantores para promover conversas circulares, de unicidade de opiniões. O que não gostam, também é preferencialmente comum, para facilitar as conversas que na sua maioria não passam de monólogos em grupo, trocas de afirmações à vez. Representam várias personagens ao longo do dia: são foliões bem-dispostos, quando estão entre amigos, graves com a/o namorada/o ou a/o companheira/o, disponíveis com o patrão, lambe botas com o chefe, infantis na relação extra, austeros com os sogros e a perfeição personificada em méritos e intenções nas redes sociais e nos blogues. Apoiam causas que desconhecem, combatem males imaginários e defendem a cidadania ao mesmo tempo que olham os pretos de cima, os ciganos de lado, ou os brancos de esguelha.
Em geral, quanto mais requerem a atenção, menos têm para mostrar e como têm tendência a serem todos iguais, falam alto para se distinguirem. Quase todos são especialistas nos problemas dos outros e habilitados a dar conselhos a todos e opiniões acerca de tudo, na ilusão de, por um instante, se verem por cima da sua vidinha de merda. Têm sempre lições para dar, julgam que estamos à espera que nos digam o que pensam a respeito de tudo porque sabem de tudo, todos são Rebelos de Sousa ou Sousa Tavares. Uma pessoa aceita as opiniões dadas de boa-fé e dá-lhes a importância que lhe merece a sua fonte. A gente sabe sempre o que teria feito melhor – “se fosse eu…” – são picuinhas e mesquinhos; choramingam porque trabalham muito, dormiram pouco, está muito transito, está frio, está calor, as crianças não os deixam dormir, a gasolina aumentou, não têm tempo, têm pena de si próprios, são pessimistas e choramingas e gostam mais dessa sensação do que de olhar à sua volta. As pessoas conversam, a gente fala; as pessoas ponderam, a gente faz como os outros; as pessoas dão opiniões, a gente faz juízos; as pessoas aprendem, a gente já sabe; uma pessoa gosta que os que a rodeiam se sintam bem, a gente usa as suas mágoas para assombrar a alegria dos outros.
São ignorantes, incultos e estúpidos, sejam trolhas, médicos ou deputados, por qualquer ordem. Mas não necessariamente maus, ou más companhias, sobretudo se mantiverem a boca fechada.
E se no grupo das pessoas, a soma das partes é maior do que o todo, no grupo da gente, cada vez maior, a soma de todas as partes aproxima-se do um. E aproxima-se do todo desejado: uma mole adormecida, monocromática, apática e amestrada; doutrinada e condescendente; fiel, resignada e à espera,  apenas à espera…


 

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This Post Has 3 Comments

  1. João Rafael

    Foi, para mim, uma alegria e satisfação voltar a ler-te ao fim de quase 30 anos. A pessoa que eu conheci existe e cada vez maior enquanto tal. Pessoas como tu fazem com que, no grupo das pessoas, a soma das partes não seja só maior do que o todo… A cada nova contagem, com o passar do tempo, o resultado é exponencial… E isso passa para os herdeiros e leva-me a creditar que as minorias são indispensáveis. Grande abraço. Gostei muito.

  2. Bem, vou comentar só mesmo para testar se aceita comentários e já agora para dizer gostei e como te entendo!

  3. Anónimo

    Tão verdadeiro. Gostei imenso e partilho. Obrigada, Rui.

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